ESCRITORES DO ROMANTISMO
BRASILEIRO – PRIMEIRA GERAÇÃO
Na
poesia da primeira geração,
predomina a busca pela nacionalidade brasileira. Mas observamos outras
tendências na prosa, como o romance regionalista, o romance histórico e o
romance urbano, aquele que tem como cenário a cidade grande.
. JOSÉ
DE ALENCAR
(
José Martinho de Alencar, nascido em 1829, morto em 1877. Estudou Direito em
São Paulo; Trabalhou como jornalista, elegeu-se deputado, foi Ministro da
Justiça.)
Ø Alencar Indianista: os
fundadores da nação
Após a Independência política do país,
o Romantismo buscou a figura do indígena
como forma de distinguir o Brasil de Portugal e mostrar as potencialidades da
nova nação. Como resultado desse primeiro momento, o indianismo invadiu a
cultura do século XIX e teve em José de Alencar ( 1829-1877) seu mais célebre
romancista.
Peri, primeira personagem indígena do
autor a conquistar o interesse do público, protagoniza o romance O guarani (1857). A narrativa gira em
torno do envolvimento do goitacá Peri em uma luta entre indígenas e brancos,
causada pela morte acidental de uma jovem aimoré por um jovem português. Peri
luta para defender a família portuguesa recém-estabelecida na terna da vingança
dos Aimorés. Totalmente devotado a Cecília (Ceci), filha do fidalgo dom Antônio
de Mariz, recebe deste a incumbência de garantir a sobrevivência da moça.
Iracema (1865), segundo romance
indianista de Alencar, conta a história da jovem tabajara que deveria
permanecer virgem a fim de cumprir seu papel de sacerdotisa. Ao se apaixonar
pelo colonizador português Martim, entrega-se a ele; por isso, passa a ser
considerada traidora da tribo. Sua breve vida será marcada pela tristeza, e o
nascimento de seu filho, Moacir, determinará sua morte.
Por fim, Ubirajara (1874) narra as
provas vividas pelo herói indígena que dá nome ao romance para liderar a união
de povos inimigos em uma única nação fortalecida.
A chamada trilogia indianista de José de Alencar mostra, portanto, em ordem
inversa á dos eventos históricos, as três etapas da relação do indígena com o
colonizador: O guarani trata do
processo de povoamento português; Iracema,
da chegada dos primeiros brancos e da miscigenação; Ubirajara, da convivência entre as nações indígenas quando os
brancos ainda não haviam aportado.
Ø Heróis brasileiros
José de Alencar tratou a
cultura indígena como marca específica da nacionalidade e, por isso, seus
representantes são típicos heróis.
Em nenhum momento, entretanto, o herói indígena supera o branco colonizador.
Ambos se equivalem em honra e coragem para que seus descendentes, frutos da
miscigenação, possam justificar o orgulho patriótico.
O perfil idealizado das
personagens indígenas incorpora, de um lado, os traços positivos dos europeus e, de outro, a grandiosa natureza local com a qual seu aspecto
físico é comparativo.
“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que
tinha os cabelos mais negros que a asa de graúna e mais longos que seu talhe de
palmeira. O favo de jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia
no bosque como seu hálito perfumado.”
( Alencar, José de. Iracema. São Paulo: Companhia
Editorial Nacional, 2004. P. 19.)
Ao destacar a beleza
delicada da personagem, o autor promove uma idealização que cumpre duas
funções: alinhar o indianismo aos
ideais românticos e minimizar a crença, vinda desde o início da colonização, de
que os indígenas constituíam uma etnia inferior e rústica. Trata-se, é
evidente, de uma abordagem etnocêntrica,
já que a valorização do povo nativo não ocorreu por suas qualidades próprias,
mas sim por aquilo que os fazia parecidos com o que o europeu considerava bom e
belo.
O autor contribuiu, não
obstante, para modificar p preconceito quanto à cultura nativa ao incluir, na
introdução dos romances e em inúmeras notas de rodapé, informações históricas e
vocabulário tupi-guarani, frutos de seus estudos sobre os diversos povos
indígenas. Aliás, a incorporação de palavras
indígenas e o trabalho com a
linguagem em geral foram elementos fundamentais na elaboração de seus
romances.
“ – Jurandir é moço; ainda conta os anos pelos dedos e
não viveu bastante para saber o que os anciões da grande nação tocantim
aprenderam nas guerras e nas florestas. O moço é o tapir que rompe a mata, e
voa como a seta. O velho é o jabuti prudente que não se apressa. O tapir erra o
caminho e não vê por onde passa. O jabuti
observa tudo, e sempre chega primeiro.[...] ”
( Alencar, José de. Ubirajara. São Paulo: FTD,
1994.p.62.)
Tanto na descrição e na
construção de suas personagens quanto na maneira de narrar os fatos. Alencar
procura garantir, pela aproximação do universo próprio do nativo, maior
credibilidade á imagem favorável que está sendo construída. Tal estratégia
favorece a concretização do projeto do autor: criar heróis capazes de ser
assimilados pelos brasileiro.
Ø Alencar histórico: a
recriação do passado
Várias personagens dos
romances indianistas realmente fizeram parte da história do Brasil e, por isso,
tais obras de Alencar são também consideradas históricas. Essa classificação, porém, cabe melhor ao conjunto de
narrativas que trataram das riquezas da terra brasileira, de sua posse
definitiva e do alargamento de suas fronteiras. São romances que relatam
episódios históricos desde o inicio da conquista do país. Entrelaçam-se neles
enredos imaginativos e o registros de fatos, datas e locais, com o objetivo de
mostrar a origem do povo brasileiro.
As minas de prata (1862)
é um exemplo do gênero, que, a propósito, não alcançou grande popularidade. Em
meio a duelos conspirações, perseguições e outras peripécias, o romance retrata
a saga dos desbravadores do sertão brasileiro na busca por metais preciosos. A
obra traz também uma crítica à cobiça dos bandeirantes e aos atos religiosos da
Companhia de Jesus.
Ø Alencar regional:
recortes do Brasil
O regionalismo de Alencar corresponde a um desdobramento de seu
indianismo, pois nas obras consideradas regionalistas o autor criou, também
mitos de origem do país. Elegeu, para isso, figuras masculinas de áreas que
distavam dos centros mais desenvolvidos, cuja autêntica brasilidade estaria
preservada pelo contato menor com os europeus. Assim, o escritor pôde compor um
quadro social bem abrangente do Brasil, ao colocar em cena sertanejos, gaúchos,
fluminenses e paulistas interioranos.
Nesse tipo de romance,
além de retratar a fauna e a flora da região, Alencar revela, com grande poder
criativo, particularidades culturais da sociedade
rural. É o que se percebe neste trecho de O sertanejo (1875), no qual
Arnaldo explica para sua mãe por que não acatará as ordens do capitão-mor,
principal autoridade da região.
“ – Não cometi nenhum crime para
carecer de perdão, mãe.
Justa denunciou no semblante a
estranheza que lhe causavam as palavras do filho:
- Pois não desobedeceste ao senhor
capitão-mor, Arnaldo?
- Para desobedecer-lhe era preciso que
ele tivesse o poder de ordenar-me que fosse um vil; mas esse poder, ele não
possui, nem alguém neste mundo. O senhor capitão-mor exigiu de mim que lhe
entregasse Jó, e eu recusei.
- Mas filho, o senhor capitão-mor não é
o dono da Oiticica? Não é ele quem manda em todo
esse sertão? Abaixo de El-rei que está lá na sua corte, todos devemos servi-lo
e obedecer-lhe.
- Pergunte aos
pássaros que andam no ares, e ás feras que vivem nas matas, se conhecem algum
senhor além de Deus? Eu sou como eles, mãe.
- Tu és meu filho,
Arnaldo. Lembra-te do que foi para teu pai esta casa onde nasceste, e do que
ainda é hoje para tua mãe.
- Os benefícios, eu os
pagarei sendo preciso com a vida; mas essa vida que me deu, mãe, se eu a
vivesse sem honra, meu pai lá do céu me retiraria sua bênção.”
(Alencar, José de. O
sertanejo. São Paulo: Ática, 1975. P . 80-81.)
O
fragmento mostra valores e costumes do universo interiorano. Por meio dele,
sabe-se do poder quase irrestrito do capitão-mor, que assume a função do Estado
na região, determinando regras, exigindo seu cumprimento e punindo os
desobedientes, sabe-se, igualmente, que a família do protagonista recebeu
benefícios desse proprietário e, por isso, sente-se em dívida permanente. Esses
elementos refletem as relações entre proprietários e empregados no sertão à
época.
É nesse
universo peculiar que surge Arnaldo, o herói idealizado em quem se une a
tradição europeia do indivíduo honrado com os traços particulares do sertanejo
do Brasil. Assim como no romance indianista, os elementos do cenário nativo – a
liberdade dos pássaros e das feras – são incluídos na composição da personagem
para criar o mito. As virtudes do indivíduo interiorano são destacadas e muitas
vezes confrontadas com as características do morador da cidade, vil ou
insignificante. É uma forma de Alencar criticar o progresso, quando este altera
os valores e a aparência das regiões.
Ø Alencar urbano: análise
de costumes
Nos romances urbanos, a figura
feminina emerge e recebe caracterização psicológica repleta de sutilezas e
ambiguidades. Por isso, é comum a alusão aos perfis de mulheres construídos por
José de Alencar.
Em suas principais obras
do ciclo urbano, Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875), o autor trata de mulheres de personalidades forte,
responsáveis por suas próprias vidas; incomuns portanto, para a sociedade da
época. Em Senhora, a protagonista
Aurélia, subitamente enriquecida por uma herança do avô, “compra” o homem que
ama, oferecendo-lhe um dote em dinheiro. Este a abandonara, quando ela era
pobre, por uma moça rica, mas depois, necessitado, aceita o contrato de
casamento. Nesta passagem, logo após o casamento, ela humilha Fernando Seixas
por ter aceitado sua proposta.
“ – A riqueza que Deus me concedeu
chegou Tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres
enganadas. Quando a recebi, já conhecia o mundo e suas misérias; Já sabia que
moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza
servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar
a esse homem que não me soube compreender, que mulher o amava, e que alma
perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a
proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a
minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta-me que eu o ame. Essa
última consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o
senhor matou-me o coração, era justo, era justo que o prendesse ao desejo de
sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: este constante
martírio a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento; o
senhor ficará livre e rico.
(Alencar, José de.
Senhora. São Paulo: Scipione, 1994. P. 87.)
O desejo
de vingança dá vigor e autoridade a Aurélia. Suas concepções românticas,
entretanto, dão origem a sua mágoa, pois ela acredita no amor único e
verdadeiro. Aurélia não é uma “ feminista”, nem deseja abrir mão do destino da
mulher, que era se casar. O centro da trama está no desequilíbrio amoroso
produzido pelo dinheiro na vida conjugal. Neste e em outros romances urbanos de
José de Alencar, orgulho, inveja e amor ferido revelam a critica do autor aos
valores burgueses.
Tal
tendência poderia ter levado o romance urbano de Alencar em direção ao
Realismo, uma tendência literária que se consolidaria posteriormente. Seus
enredos e as convicções de suas personagens, no entanto, permaneceram
românticos. Na sequência dos acontecimentos, o narrador reconstrói a dignidade
do herói e mantém a idealização romântica: Fernando se reabilita, e Aurélia
pode amá-lo como herói honrado que ele passa a ser.
Em
síntese, mesmo movidos pela idealização romântica, os romances de Alencar
registram de forma crítica os valores da época. Além disso, cumprem um papel de
crônicas de costumes do Rio de Janeiro imperial ao descrever a vida burguesa na
corte.
·
Joaquim Manuel de Macedo: o nascimento do romance
brasileiro
(Nascido
em 1820, morto em 1882. Médico, fundou junto com Gonçalves Dias a revista
Guanabara.)
Joaquim Manuel de
Macedo (1820-1882) pode ser considerado o primeiro romancista brasileiro. Em
1844, mesmo ano em que se formou em Medicina, lançou sua primeira e mais
célebre obra: A Moreninha. O autor
escreveria mais 17 romances, todos seguindo a mesma formula bem-sucedida da
obra de estreia: narrativas leves, envolventes, cheias de diálogos e com final
surpreendente.
A Moreninha narra os desdobramentos de uma aposta entre
um grupo de estudantes de Medicina em viagem à ilha onde mora a avó de um
deles, de nome Filipe. Tudo acontece porque um dos jovens, Augusto, afirma ser
incapaz de amar apenas uma mulher. E os demais afirmam que ele voltará
apaixonado da viagem, o que o obriga a escrever um romance sobre o
acontecimento.
Augusto perde a
aposta, pois se apaixona pela irmã de Filipe, Carolina, a moreninha. Todavia, a
paixão passa por complicações, uma vez que o rapaz havia jurado seu amor a
alguém que conhecera aos 13 anos. O conflito só tem solução ao final da
narrativa, quando o rapaz faz uma surpreendente descoberta.
A moreninha e os
demais romances de Macedo apresentam protagonistas moralmente virtuosas, que se
caracterizam pela pureza afetiva e têm no casamento o objetivo redentor de sua
vida, alcançado somente após um longo período de conflitos e sofrimentos, Esse
sentimentalismo exacerbado, tipicamente romântico, divide espaço com a crônica
dos costumes da sociedade burguesa, embora não chegue a ressaltar as
contradições e os conflitos desse meio social.
“ A Moreninha : Capítulo 16 - O sarau
Um sarau é o bocado
mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau todo mundo tem fazer.
O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados
negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O velho
lembra-se dos minutes e das cantigas d seu tempo, e o moço goza todos os
regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no
seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos
aplausos, por entre os quais surde, ás vezes, um bravíssimo inopinado, que
solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do
“écarté”, mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando
um sustenido; daí a pouco vão outras pelo braço de seus pares, se deslizando
pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda
Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocente que movem
olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó, que
ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que vieram para o chá, e que ela leva
aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um araviado dândi que
dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá, que
senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca,
porque, para alguns é regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos.
E o mais é que nós
estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da corte para a ilha de...
senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidade: alegre, numerosa e
escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte
borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre todas essas
elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver qual
delas vence em graças, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa
Moreninha, princesa daquela festa.”
(Joaquim Manoel de Macedo,
A Moreninha, Moderna, p. 120-1)
· Manuel Antônio de Almeida: a malandragem em cena
Órfão e
de origem humilde, Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) teve de trabalhar
desde cedo para sobreviver. Formou-se em Medicina, mas dedicou-se quase sempre
ao jornalismo, ora como revisor, ora como redator do Correio Mercantil. Foi nesse jornal que publicou, na forma de folhetim,
seu único romance, Memórias de um
sargento de milícias, entre 1852 e 1853. A obra foi suficiente para
consagrá-lo.
Embora
seja contemporâneo de Joaquim Manuel Macedo e dê continuidade ao romance urbano
iniciado por este, Manuel Antônio de Almeida apresenta mais diferenças do que
semelhanças com o autor de A Moreninha
e a maioria dos escritores da época. Sua linguagem tem um tom coloquial, mais próximo da linguagem jornalística, bem
diferente do rebuscamento e da abundância de metáforas adotadas no romance
urbano.
Além
disso, não há na obra de Manuel Antônio de Almeida idealização nem do
protagonista nem da figura feminina. Outra novidade a destacar é que nas Memórias o espaço retratado é o do indivíduo comum, da classe média do
centro urbano, em contraste com o ambiente da burguesa abastada, como acontece,
por exemplo, em A moreninha.
Diferentemente
dos narradores tipicamente românticos que criticam e elogiam de maneira
exagerada a realidade sobre a qual falam, Manuel Antônio de Almeida apresenta
em sua obra uma observação satírica e irônica das relações de interesse entre
personagens. Algumas destas nem sequer têm nome; sua designação restringe-se ao
papel social que desempenham: o barbeiro, a parteira, etc. Em uma passagem de Memórias, o narrador chega a ironizar o
termo romântico: ”mas o homem era
romântico, como se diz hoje, e babão como se dizia naquele tempo”.
Ao
contrário do virtuoso herói romântico, Leonardo, protagonista da obra, é um malandro – Almeida foi um dos primeiros
escritores a introduzir na literatura brasileira essa figura simbólica que
posteriormente se tornaria tão forte no imaginário nacional. O malandro é
aquele que, sem se dedicar a um trabalho convencional, e também sem ser
necessariamente um criminoso, equilibra-se entre essas duas esferas, driblando
as adversidades da vida a fim de sobreviver. Leonardo é um anti-herói moderno,
mais próximo de uma pessoa comum, constituída de virtudes e defeitos.
Trecho
de Memórias de um sargento:
“[...] Achava ele um
prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava; se se queria
que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo;
se se queria que estivesse quieto, parece que uma mola oculta o impelia e fazia
com que desse uma ideia pouco mais ou menos aproximada do modo-contínuo.”
( Almeida, Manuel
Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Moderna, 1993. P.
48-49)
·
GONÇALVES DIAS
(Antônio
Gonçalves Dias, nascido em 1823, morto em 1864. Filho de uma mestiça e de um
comerciante português, estudou direito em Coimbra. Foi professor e jornalista.)
Gonçalves Dias, como
José de Alencar, construiu personagens
indígenas conforme as convenções românticas. Em seus poemas, porém, a
ênfase não recai sobre a personalidade do herói e seus feitos, mas sobre seus valores e sentimentos. E, apesar do
exagero de certos traços de bravura, a representação do indígena e de sua
cultura é verossímil. Isso contribuiu para aceitação, pelo leitor da época, do
nativo como modelo para orgulho pátrio.
Ao permitir que o
indígena se expresse nos poemas ou que assuma o papel de eu lírico, o poeta
explicita a sensibilidade desse indivíduo. Assim, nesse trecho de “Marabá”, que
quer dizer “mestiça”, é a indígena que se lamenta por ser desprezada pelos
homem da tribo:
“Eu vivo sozinha;
ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os
homens de mim não se
[esconde
- “Tu és”, me
responde,
“Tu és Marabá!”
Meus olhos são
garços, são cor das safiras,
Têm luz das
estrelas, têm meigo brilhar;
Imitam as nuvens de um
céu anilado,
As cores imitam das
vagas do mar!
Se Algum dos
guerreiros não foge a meus
[passos:
- “Teus olhos são
garços”,
Responda anojado, ”mas
és Marabá”:
“Quero antes uns olhos
bem pretos, luzentes,
“Uns olhos fulgentes,
“Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!
(Dias, Gonçalves. Poesia.
8 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1977. P. 54.)
No poema, Gonçalves
Dias usou o eu lírico feminino e uniu dois dos principais temas de sua poética:
a frustação amorosa e o indianismo. Dois ideais de beleza se contrapõem: de um
lado, o ideal europeu – a moça tem olhos esverdeados; de outro, o ideal
indígena – o rapaz prefere olhos bem escuros, como é típico de seu povo.
Ø Lírica
Contida
Gonçalves Dias é
reconhecido como um grande poeta lírico.
Suas composições são marcadas pela melancolia
e pela saudade, como se nota no
fragmento abaixo de “Ainda uma vez, adeus!”, poema que trata do reencontro
inesperado de namorados após anos de separação.
“ Mas que tens? Não
me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu
Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Que ma darias – bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
(Dias, Gonçalves. Poesia 8. Ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1977. P. 61.)
O poeta produz uma
poesia mais equilibrada e , nesse sentido, mais clássica. Assim, mesmo quando seu tema é a desilusão amorosa, o
êxtase religioso ou a morte, seus poemas raramente expressam um sentimentalismo
espontâneo e exagerado. Em seu lugar, buscam a palavra precisa e a imaginação
contida, características que revelam a influência de autores portugueses, como
Almeida Garrett e Alexandre Herculano, ambos com formação neoclássica.
Ø Inovação
e Técnica
O domínio da língua portuguesa e a capacidade técnica destacam Gonçalves Dias dentre os poetas
nacionais. Observe estes fragmentos. O primeiro, a seguir, extraído de “ O
canto do Pinga”, traz o alerta de um sacerdote indígena que prevê a chegada dos
brancos.
“ Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiro da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos nos cantos do
Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite – era a lua já morta –
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
( Dias, Gonçalves. Poesia. 8. Ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1977. P. 45.)
Nessas duas estrofes,
todo os versos possuem nove sílabas poéticas. Além disso, os acentos tônicos
recaem sempre na terceira, na sexta e na nona sílabas, criando um ritmo bem
cadenciado. Como o poema trata de uma premonição do sacerdote da tribo, o ritmo
repetitivo diferencia a fala deste do discurso comum, atribuindo a suas
palavras um valor mágico, religioso.
Este segundo trecho,
extraído da obra Sextilhas de Frei Antão, retoma um conteúdo medieval.
“Bom tempo foy o d’outr’ora
Quando o reyno era chiristão,
Quando nas guerras de mouros
Era o rey nosso pendão,
Quando as donas consumião
Seos teres em devação
[..]
(Dias, Gonçalves. Poesia. 8. Ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1977. P. 195.)
A impressão de que se
trata de uma obra medieval surge da forma arcaica como as palavras estão
grafadas e das referências históricas: luta de cristão e mouros; presença do
rei, O poema trata da saudade dos tempos
antigos, aos quais retrocede pela própria
forma de escrita.
Note-se que, tanto em
um trecho quanto em outro, a linguagem
ajusta-se ao conteúdo. O ritmo cadenciado do primeiro expressa a solene alerta
feito pelo eu lírico. Já a linguagem do segundo remete ao quadro histórico
tratado. Gonçalves Dias testou estruturas e ritmos diversos, sempre procurando
associá-los aos fatos narrados ou aos estados psicológicos que pretendia
expressar.
. VISCONDE DE TAUNAY
(Alfredo
D’Escragnolle Taunay, nascido em 1843, morto em 1899. Cursou a Escola Militar,
participou da Guerra do Paraguai. Foi deputado e senador.)
Os representantes da
tendência regionalista do Romantismo entendiam que a imagem de um Brasil
autêntico deveria retratar um espaço que não tivesse recebido influência da
cultura europeia, marcante nos centro urbanos. Por isso, elegeram o interior e
o sertão cenários para representar esse Brasil ingênuo e original.
Alfredo D’Escragnolle
Taunay, ou Visconde de Taunay
(1843-1899), apesar de ter apenas uma obra de maior peso (Inocência, publicada em 1872), é considerado o melhor realizador da
prosa regionalista romântica. Engenheiro, militar, pintor e politico, Taunay
era um atento observador, sendo menos influenciado pela fantasia e pelo
idealismo do Romantismo.
O enredo de Inocência tem como ambientação o
interior ao sul de Mato Grosso, onde vivem Pereira e sua filha Inocência, que
estava prometida em casamento para um vaqueiro truculento, de nome Manecão
Doca, embora fosse apaixonada por Cirino, um jovem boticário (farmacêutico).
A descrição objetiva
da paisagem e dos valores morais da sociedade local coexiste com
características típicas do estilo romântico, como o amor impossível entre
Inocência e Cirino o conflito do bem contra o mal apresentado de maneira
esquemática; e o perfil idealizado da personagem principal ( cabocla sertaneja
com características típicas de heroína romântica: pele alva e fragilidade
física).
Quanto à linguagem, em
Inocência o estilo culto do narrador,
de formação urbana, alterna-se com o registro da língua oral sertaneja, nas
falas das personagens locais.
Trecho de Inocência em que a protagonista e
Cirino confessam o amor que sentem um pelo outro. A primeira fala é de Cirino.
Capítulo XVIII - Idílio
- Porque eu amo... amo-a, e sofro como um
louco... como um perdido.
- Ué, exclamou ela, pois amor é sofrimento¿
- Amor é sofrimento, quando a gente não
sabe se a paixão é aceita, quando se não vê quem se adora; amor é céu, quando
se está como eu agora estou.
- E quando a gente está longe, perguntou
ela, que é que se sente¿
- Sente-se uma dor, cá dentro, que parece
que se vai morrer... Tudo causa desgosto: só se pensa na pessoa a quem se quer,
a todas as horas do dia e da noite no sono, na reza, quando se pede a Nossa
Senhora, sempre ela, ela, ela!.. o bem amado...e...
- Oh! Interrompeu a sertaneja com
singeleza, então eu amo...
- Você¿ indagou Cirino sofregamente.
- Se é como... mecê diz...
- É... é... eu lhe juro!...
- Então... eu amo, confirmou Inocência.
- E a quem¿... Diga: a quem¿
Houve uma pausa, e a custo retrucou ela
ladeando a questão:
- A quem me ama.
- Ah! Exclamou o jovem, então é a mim... é
a mim, com certeza, porque ninguém neste mundo, ninguém, ouviu¿ é capaz de
amá-la como eu... Nem seu pai... nem suam mãe, se viva fosse... Deixe falar seu
coração... Se quer ver-me fora deste mundo... diga que não sou eu, diga!...
- E como ia mecê morrer¿ atalhou ela com
receio.
- Não falta pau pra me enforcar, nem água
para me afogar.
- Deus nos livre! Não fale nisso... Mas,
por que é que mecê gosta tanto de mim¿ Mecê não é meu parente, nem primo, longe
seja, nem conheço sequer... Eu lhe vi apenas pouco tempo... e tanto se agradou
de mim¿
- E com você... não sucede o mesmo¿
perguntou Cirino.
- Comigo¿
- Sim, com você... Por que é que está
acordada a estas horas¿ Por que é que não pode dormir¿... que a cama lhe parece
um braseiro, como a mim também parece¿... Por que pensa em alguém a todo o
instante¿ Entretanto, esse alguém não é primo seu, longe que seja, nem
conhecido sequer¿...
- É verdade, confessou Inocência com doce
candura.
[...]
E, apesar de alguma resistência, fraca
embora, mas conscienciosa, que lhe foi aposta, conseguiu que a formosa rapariga
se recostasse ao peitoril da janela.
- Amar, observou ela, deve ser coisa bem
feia.
- Por quê¿
- Porque estou aqui e sinto tanto fogo no
rosto!... Cá dentro me diz um palpite que é pecado mortal que faço...
- Você tão pura! Contestou Cirino.
- Se alguém viesse agora e nos visse, eu morria de vergonha. Sr.
Cirino, deixe-me... vá-se embora!... o Sr. Me atirou algum quebranto... aquela
sua mezinha tinha alguma erva para mim tomar... e me virar o juízo...
- Não, atalhou o mancebo com forçar, eu lhe
juro! Pela alma de minha mãe... o remédio não tinha nada!
- Então por que fiquei... assim, que me não
conheço mais¿ ... Se papai aparecesse... não tinha o direito de me matar¿...
Foi-se-lhe a voz tornando cada vez mais
baixa e sumiu-se num galfão de lágrimas.
Atirou-se Cirino de joelhos diante dela.
[...]
(Taunay, Visconde de. Inocência. 28. Ed.
São Paulo: África, 1999. P. 95-97)
·
BERNARDO GUIMARÃES
(Bernardo
Joaquim da Silva Guimarães, nascido em 1825, morto em 1884. Estudou Direito em
São Paulo, foi juiz e professor. É considerado um dos criadores do romance
sertanejo).
Bernardo Guimarães
(1825-1884) estreou na poesia, mas, como Taunay, consagrou-se como romancista.
A simplicidade de suas tramas as aproxima de “causos” da literatura oral ou,
ainda, da dinâmica narrativa dos folhetins, o que contribuiu enormemente para o
sucesso de sua obra.
Bernardo Guimarães
dedicou-se a retratar a vida interiorana de Minas Gerais e Goiás, com seus
regionalismos culturais e linguísticos, sem, no entanto, abandonar a linguagem
convencional e repleta de adjetivos, típica de um cidadão letrado da cidade.
“ Era
por uma linda e calmosa tarde de outubro. [...] A viração saturada de
balsâmicos eflúvios se espreguiçava ao longo das ribanceiras acordando apenas
frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo farfalhar de leve o tope dos
coqueiros, que miravam-se garbosos nas lúcidas e tranquilas águas da ribeira.”
(Guimarães, Bernardo. A escrava Isaura. São
Paulo: FTD, 2011. P. 11)
Da numerosa obra de
Bernardo Guimarães, apenas dois romances são destacados pela crítica: O seminarista (1872) e A escrava Isaura (1875). O ermitão de Muquém (1870), lançado dois
anos antes de O gaúcho, de José de
Alencar, é historicamente o primeiro romance regionalista romântico.
Ø O seminarista: um
amor impossível
O seminarista narra a
história de amor entre Margarida e Eugênio. Mandado para um seminário pela
família, que intercepta a correspondência do casal, Eugênio acredita ter sido
esquecido pela amada e se ordena padre. Tragicamente, a primeira missa rezada
por ele em sua cidade natal é a do velório de Margarida, fato que o enlouquece.
A obra retrata a
sociedade interiorana – especialmente a força da Igreja sobre seus costumes – e
aborda o delicado tema do celibato clerical ( proibição de relações conjugais
aos religiosos). Predominam, no entanto, os lugares-comuns românticos, como o
amor impossível entre heróis virtuosos, embora frágeis, e o sentimentalismo
exagerado, num texto carregado de adjetivos.
Ø A
escrava Isaura: o triunfo do bem
Romance mais conhecido
de Bernardo Guimarães, A escrava Isaura trata de outro tema delicado para
época: a escravidão. O caráter abolicionista do livro, no entanto, precisa ser
visto com reservas, uma vez que a escrava em questão é uma mulher branca, culta
e refinada, aos moldes das heroínas românticas.
“ A tez é como o marfim do teclado, alva
que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não saberíeis dizer se
é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada.
(Guimarães, Bernardo. A escrava Isaura. São
Paulo: FTD, 2011. P. 13-14)
Em outra passagem, diz
Malvina, senhora de Isaura:
“ És formosa, e tens uma cor tão linda, que
ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano.
(Guimarães, Bernardo. A escrava Isaura. São
Paulo: FTD, 2011. P. 15)
Assim, de origem
negra, mas, segundo o narrador, “de cor clara e delicada como de qualquer
branca”, Isaura é perseguida por Leôncio, seu perverso e obstinado senhor.
Também aqui a temática social é marcada pelos lugares-comuns do Romantismo: o
conflito entre Isaura e Leôncio é a expressão de um embate entre bem e mal,
justiça e injustiça, pureza e vício, resultando na vitória das personagens de
bom coração